terça-feira, abril 01, 2014

Crónicas e Cartas



"Os pés têm a intimidade da lama, as asas têm a camaradagem da luz. Todo pé quer ser asa." [p. 15]

[Sobre Lisboa] "Como Roma, ela tem as sete colinas, como Atenas, tem um céu transparente que poderia viver nela o povo dos deuses. Como Tiro, é aventureira do mar. Como Jerusalém, crucifica os que lhe querem dar uma alma." [p. 16]

"Na arte só tem importância os que criam almas, e não os que reproduzem costumes. A arte é a história da alma. Queremos ver o homem: não o homem dominado pela sociedade, entorpecido pelos costumes, deformado pelas instituições, transformado pela cidade - mas o homem livre, colocado na livre Natureza, entre as livres paixões." [p. 33]

"... para condenar a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos "Este é uma besta!  Aquele é um maroto!". Para proclamar "É um gênio!" ou "É um santo!" oferecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz de um céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com o lançar de um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um manganão enfeitado de louros ou  nimbado de raios." [p. 48]

"É justamente nestas horas de festa íntima, quando para por um momento o furioso galope do nosso egoísmo -  que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de simpatia universal, e que a consciência da miséria em que se debatem tantos milhares de criaturas volta com uma amargura maior. Basta então ver uma pobre criança, pasmada diante da vitrine de uma loja,  e com os olhos em lágrimas para uma boneca de pataco, que ela nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços - para  que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável. Deste sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas,  o egoísmo parte à desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionários endurecidos, dignos do cárcere: e a miséria continua a gemer ao seu canto!" [p. 60]

"Os filósofos afirmam que isto há de ser sempre assim: o mais nobre entre eles, Jesus, cujo nascimento estamos exatamente celebrando, ameaçou-nos, numa palavra imortal, que teríamos sempre pobre entre nós. Tem-se procurado com revoluções sucessivas fazer falhar esta sinistra profecia - mas as revoluções passam e os pobres ficam." [p. 60]